domingo, 20 de fevereiro de 2011

O plano de classificação do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo



No Brasil, o trabalho do Arquivo Público do Estado de São Paulo é um dos poucos em que se observa uma utilização consciente e consistente de conceitos de diplomática e tipologia documental na elaboração de planos de classificação e tabelas de temporalidade.

O Plano de Classificação e Tabela de Temporalidade da Administração Pública do Estado de São Paulo: Atividade-Meio [PCTT-SP] foi desenvolvido entre 1999 e 2002 pela equipe da Profa. Ieda Pimenta Bernardes e representa um bom exemplo de como é possível desenvolver soluções alternativas ao modelo proposto pelo Código de Classificação de Documentos de Arquivo da Administração Pública: Atividade Meio' [CCDA-CONARQ] do CONARQ.

Para apresentar um contraste entre as duas propostas, principalmente no que se refere à construção da estrutura de classificação, pesquisei alguns detalhes do processo de desenvolvimento do modelo paulista e revistei o excelente estudo do professor Renato O código de classificação de documentos do Conselho Nacional de Arquivos: um estudo de caso de um instrumento de classificação.

A EXPERIÊNCIA DO CONARQ


A origem do CCDA-CONARQ remonta a um período muito conturbado da história da Administração Pública brasileira. Para Luciano Martins (1997, p. 27):

Durante os três governos civis que se seguiram ao regime militar (mas especialmente sob o caótico governo Collor), a organização e as estruturas dos altos escalões da administração pública foram modificadas de forma constante e errática. Novos ministérios secretarias, e órgão de alto nível do Poder Executivo eram criados apenas para ser extintos meses depois, ou fundidos com outros, ou recriados sob um nome diferente, ou designados para desempenhar outras tarefas.

Em 1989, provavelmente buscando insumos para se afirmar e também definir o seu lugar e linhas de atuação num cenário tão instável o Arquivo Nacional (AN) realizou uma pesquisa em 148 órgãos públicos situados em Brasília e no Rio de Janeiro. Os resultados da pesquisa não foram muito animadores, o quadro geral das instituições consultadas era:

  • Ausência de normas e procedimentos para organização dos documentos
  • Alto grau de desorganização
  • Desconhecimento de procedimentos arquivísticos
  • Documentos organizados por espécies documentais e ordenados por número ou cronologia.

Sendo que:

  • Mais de 66% dos órgãos de Brasília declararam não possuir instrumento de classificação
  • 87% dos órgãos do Rio de Janeiro não possuiam instrumento de classificação.

Fico imaginando, a situação devia ser muito ruim mesmo. Para tentar resolver o problema o AN atuou da seguinte forma:

  • 1991 – Publicação da Lei 8.159(criou o CONARQ, órgão responsável pela definição da política nacional de arquivos)
  • 1993 - Criação de um grupo de trabalho cuja atribuição era elaborar o plano de classificação e tabela de temporalidade da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação (SEPLAN).
  • 1994 - Instalação do CONARQ (ou seja, passou a funcionar efetivamente) e criação de uma CÂMARA TÉCNICA DE CLASSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS cuja primeira missão era tornar o instrumento desenvolvido para a SEPLAN aplicável a outros órgão públicos.
  • 1996 – O CONARQ divulga por meio da Resolução n°. 4 o CÓDIGO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS DE ARQUIVO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:ATIVIDADE MEIO.
  • 1997 – Resolução n°. 8 – Revisa e amplia a o instrumento apresentado na Resolução n°. 4
  • 2001 – Resolução n°. 14 – Revoga a Resolução n°. 8. Amplia e revisa o instrumento apresentado pela resolução n°. 4.
  • 2004 - Resolução n°. 21 - dispõe sobre o uso da subclasse 080 referente ao pessoal Militar

O texto introdutório do CCDA-CONARQ traz o seguinte conceito para o código “ é um instrumento de trabalho utilizado para classificar todo e qualquer documento produzido ou recebido por um órgão no exercício de suas funções e atividades”. O texto também explica que:

A classificação por assuntos é utilizada com o objetivo de agrupar os documentos sob um mesmo tema [...] uma vez que o trabalho arquivístico é realizado com base no conteúdo do documento, o qual reflete a atividade que o gerou e determina o uso da informação nele contida.

Entendimentos desse tipo 'classificação por assunto' acabaram por gerar dificuldades para a aplicação do instrumento. Mesmo assim, até hoje é grande a aceitação do CCDA-CONARQ. Conforme analisa o Prof. Renato “Elaborar um modelo de estrutura de classificação, que sirva de referência para os órgãos públicos brasileiros, é um avanço na tentativa de diminuir os grandes problemas relacionados ao tratamento dos registros documentais do Estado brasileiro”. Mas o Prof. Também expõe alguns problemas do código:

- Imprecisão na utilização do conceito de ‘assunto’

- Utilização do princípio e da lógica da codificação decimal de Dewey.
- Utilização simultânea de mais de um princípio de classificação para divisão dos conjuntos
- Utilização de espécies e tipos documentais como unidades de classificação
- Ultraclassificação de documentos

Em 2006, o trabalho O uso do código de classificação de documentos de arquivo do Conselho Nacional de Arquivos apresentou uma análise feita em 22 dos 23 Ministérios, constatando que 64% dos órgãos da Esplanada utilizavam o código de classificação do CONARQ.

A EXPERIÊNCIA DO SAESP

Em 1999, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo aprovou o projeto "Um Sistema de GEstão Documental para o Estado de São Paulo" elaborado pelo Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo (SAESP). Os trabalho para elaboração do PCTT-SP envolveram:

  • 12 reuniões com as Comissões de Avaliação de Documentos de Arquivo
  • 106 visitas técnicas às entidades, para esclarecer dúvidas e analisar documentos.
  • 10 reuniões de discussão das propostas de classificação apresentadas.
  • Pesquisa a 250 textos legais - Mapeamento da produção documental
  • Após a finalização da pesquisa enviou-se ofício a 80 órgãos solicitando análise e manifestação formal sobre o instrumento.

Em 2002, o projeto coordenado pelas Professoras Ieda Pimenta Bernardes e Ana Maria Almeida Camargo (USP) é concluído. O plano de classificação desenvolvido foi conceituado como um “[...] instrumento utilizado para classificar os documentos de arquivo agrupando-os de acordo como o órgão produtor, a função, a subfunção e a atividade responsável por sua produção ou acumulação.”

As principais características do trabalho são:

  • Descrição de todas as Funções e Subfunções
  • Em sua estrutura explicita os níveis em função, subfunção, atividade e, por fim, documento.
  • A codificação chega ao nível da tipologia documental
  • Tem raízes claras no trabalho realizado pelos arquivistas de Madrid na formulação das tipologias documentais para arquivos municipais.

Pra quem não está muito acostumado com esse tipo de estrutura, fiz um copia e cola do plano:

03 GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS (FUNÇÃO) Esta função corresponde a coordenação das ações de recrutamento, seleção, desenvolvimento e capacitação, avaliação e acompanhamento da vida funcional dos funcionários ou servidores encarregados da execução de serviços públicos ou de natureza pública, dentro das hierarquias funcionais e dos regimes jurídicos aos quais se submetem.
03.01 Planejamento e formulação de políticas de recursos humanos (SUBFUNÇÃO) Esta subfunção refere-se à elaboração de manuais de procedimentos, realização de estudos e pesquisas relativos aos padrões de lotação, de adequação dos quadros de pessoal, de planos de salários e programas de regimes de trabalho e da classificação e cadastro de cargos e funções.

Função: 03 GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS

Subfunção: 03.01 Planejamento e formulação de políticas de recursos humanos

Atividade: 03.01.01 Elaboração de estudos e pesquisas

Documentos:
03.01.01.01 Processo de estudo de política salarial
03.01.01.03 Processo de estudo para classificação de cargos e funções
03.01.01.06 Processo de estudo sobre a necessidade de cursos
03.01.01.07 Processo de planejamento anual de concursos públicos e seleção


BREVE COMPARAÇÃO

Na tabela abaixo, reproduzi a estrutura das classes estipuladas para os documentos da atividade de Arquivo, para fazer uma comparação entre os dois trabalhos.


Linha

CCDA-CONARQ(código 063)

PCTT-SP (código 06.01)

0

Documentação arquivística: gestão de documentos e sistemas de arquivos

Gestão de documentos e informações

1

Normas e manuais

Normalização das atividades de arquivo

2


Auturação e protocolo

3

Protocolo: recepção, tramitação e expedição de documentos

Distribuição e acompanhamento de trâmite

- Ficha de Controle da tramitação

- Relação de remessa de documentos

- Requisição de processos

4

Classificação e arquivamento

Classificação de documentos

5

-

Arquivamento

6

Destinação de documentos


- Análise. Avaliação. Seleção

- Eliminação

- Transferência. Recolhimento

Avaliação e destinação de documentos


- Processo relativo aos trabalho da Comissão de Avaliação de Documentos

- Tabela de Temporalidade de documentos

7

Política de acesso a documentos

Controle de acervos

8

-

Descrição de acervos

9

-

Expedição de certidão de transcrição de documentos

10

Assistência técnica

Controle de correspondências

Fica muito clara a diferença entre as filosofias de trabalho. Por exemplo, na linha n° 6, onde há certa correspondência entre os dois planos, observamos que o CCDA-CONARQ divide a atividade 'destinação de documentos' em tópicos temáticos, já na proposta do PCTT-SP a classe é divida conforme as tipologias documentais produzidas no decorrer da atividade de avaliação e destinação (o código de classificação vai incidir diretamente sobre a série documental). O mesmo acontece na linha n°. 3.

O tipo de abordagem proposta pelo Conarq acaba produzindo graves desvios na prática de classificação. O agente classificador é levado a determinar a posição lógica do documento dentro da estrutura de organização não pelo critério de contexto de produção, mas sim de 'conteúdo-assunto-tema' do documento.

Um exemplo: a classe 024.3, é descrita como “LICENÇAS. ACIDENTE EM SERVIÇO. ADOTANTE. GESTANTE. PATERNIDADE. [...]”, é uma classe bem extensa e totalmente temática, determina 5 anos de arquivamento corrente e 47 de intermediário. Pensem em um memorando avulso cujo texto é “Sr. Chefe, comunico que no período XYZ a servidora Fulana de tal gozará de licença maternidade”, é um documento meramente informativo, feita a comunicação o valor primário decairá drasticamente, além do mais a informação que comprova a a licença está em vários outros documentos mais importantes, como por exemplo o dossiê funcional da servidora, ou o processo de concessão do benefício. Porém a lógica temática do CCDA-CONARQ favorece que este documento corriqueiro seja classificado como 024.3, e permaneça, sem necessidade, 52 anos no órgão. Isso acontece muito.

Ou seja, acaba-se indexando e não classificando o documento. Procura-se uma determinada palavra-chave no texto do documento, e a classificação se dá conforme a correspondência dessa palavra (ou sinônimo) com a denominaçao de uma classes do plano de classificação. Algo perfeitamente cabível para a organização de livros, mas não de arquivos, onde o que se deve deixar explícito é a função ou atividade administrativa que deu origem ao registro.

A proposta paulista, mais aderente aos conceitos que aprendemos em diplomática e tipologia documental acaba favorecendo um tratamento mais inteligente dos acervos, é claro que esse tipo de abordagem exige muita pesquisa, muito cérebro, não é fácil mapear a produção documental de uma organização toda. Mas é só a partir da pesquisa que poderemos evitar a produção de classes a priori, totalmente desvinculadas da realidade dos registros da instituição.

É uma tarefa difícil superar esse paradigma do CCDA-CONARQ, sempre que converso sobre diplomática e tipologia com arquivistas mais experientes deparo com desconhecimento ou preguiça de pensar/tentar inovações com o método. Mas ainda vamos superar isso, de minha parte estou convicto de que o estudo sobre as categorias, espécies e tipos documentais representa a melhor abordagem para tratamento os problemas arquivísticos que vivemos hoje. E vocês?


Postado por: Leonardo N. Moreira

BIBLIOGRAFIA

ARQUIVO NACIONALl (Brasil). Conselho Nacional de Arquivos Classificação, temporalidade e destinação de documentos de arquivo; relativos às atividades-meio da administração pública/ Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.

GONÇALVES, Janice.Como classificar e ordenar documentos de arquivo / Janice Gonçalves. – São Paulo: Arquivo do Estado, 1998.

MARTINS, Luciano. Reforma da Administração Pública e cultura política no Brasil: uma visão geral. Brasília: ENAP, 1997.

Plano de classificação e tabela de temporalidade de documentos da administração pública do Estado de São Paulo: atividades-meio. São Paulo : Arquivo do Estado, 2005.

SOUSA, Renato Tarciso Barbosa. O Código de Classificação de Documentos de Arquivo do Conselho Nacional de Arquivos: estudo de caso de um instrumento de classificação.

SOUSA, , Renato Tarciso Barbosa. SILVA, Cintia Aparecida De Moura, SILVA, Maria Juliana,
ALMEIDA, Thiara De Costa. O Uso do Código de Classificação de Documentos de Arquivo do Conselho Nacional de Arquivos. Arquivística.net (www.arquivistica.net), Rio de Janeiro, v.2, n. 2, p 19-37.


Um comentário:

  1. "... deparo com desconhecimento ou preguiça de pensar/tentar inovações com o método."

    Excelente abordagem. Não apenas esta passagem, mas todo o texto. Destaquei esta parte em especial porque vai de encontro àquilo que critico sempre.

    Pensar é difícil. Nâo é qualquer pessoa que tem esta capacidade. Por isto o cenário nacional é dominado por arquivistas-tecnicistas (arrumadores de documentos). São raros aqueles que tentam inovar. É mais fácil seguir um manual. Querem tudo como uma receita de bolo.


    Na semana passada, fiz severas críticas em outro blog ao Plano de Classificação e a Tabela de Temporalidade do Conarq, e um mentecapto veio "vomitar" bobagens de que "apenas critico por criticar"; que não faço sugestões e blá, blá, blá...

    Ora, pensei que fosse de conhecimento público - entre os arquivistas - o Plano de Classificação e a Tabela de Temporalidade do Governo de São Paulo. Não é preciso fazer sugestões ao Conarq e aos arquivitas sobre bons exemplos de classificação de documentos de arquivos; todos o profissionais da área conhecem ou deveriam conhecer.

    O Decanato de Gestão de Pessoas (DGP) da Universidade de Brasília (UnB) contratou consultoria externa para fazer o mapeamento de processos de toda a UnB - para saber como os fluxos de trabalho funcinam e melhorá-los posteriormente; o projeto piloto é o próprio DGP e a Faculdade de Educação.

    Como membro da equipe, fiquei responsável por classificar a documentação gerada pelo referido mapeamento. Desta forma, como a UnB se insere no Poder Executivo Federal, a documentação oriunda de suas atividades deve ser recolhida pelo Arquivo Nacional (AN) caso seja considerada de guarda permanente.

    O problema é que o AN não tem competência para recolher todos os documentos provenientes das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), cujo plano e tabela - atividades-fim - dizem que vai ser aprovados pelo Conarq (não se sabe quando; se daqui a 10 ou 50 anos, quando muito dos documentos existentes hoje terão virado lixo).

    Mas voltando ao mapeamento de processos:
    quanto se tenta classificar a documentação gerada, percebe-se que a Tabela do Conarq não serve; não presta para tal. Os fluxos de trabaho vão gerar uma documentação muito grande. A Subclasse 010 é onde deve ser classificada a documentação gerada. Até aí tudo bem, mas na momento que se for recuperar esses documentos (é o que de fato importa, pois do contrário não se guardaria), vai ser um problema. O usuário terá dificuldade. Logo, é preciso "burlar" a tabela e usar outros artifícios para complementar a tabela em nome da eficaz recuperação da informação.


    Luis Pereira.

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